O fato de que centenas perderam o rumo e tropeçaram
num púlpito está patenteado tristemente nos ministérios infrutíferos e nas
igrejas decadentes que nos cercam. Errar na vocação é terrível calamidade para
o homem, e, para a igreja sobre a qual ele se impõe, seu erro envolve aflição
das mais dolorosas. Seria um curioso e penoso tema para reflexão — a freqüência com que homens dotados de razão enganam-se quanto à finalidade da sua existência e miram
coisas que nunca deveriam ter buscado. O escritor que redigiu os seguintes
versos por certo estava com os olhos postos em muitos púlpitos ocupados
indevidamente:
Mostrai ó sábios, se podeis, entre animais de toda
espécie e condição, tamanho e classe, desde elefantes a mosquitos, um ser que
tanto erre nos planos, e tantas vezes, como o homem.
Cada animal quer o
bem próprio — busca prazer, ração, repouso, que a natureza indica e mostra, sem
nunca errar na escolha feita. Só o homem falha, embora tenha razão acima dos
demais.
Descei a exemplos e
provai: O boi jamais tenta voar, não deixa os pastos na campina nem com os
peixes sonda as águas. Dos animais, só o homem age oposto à sua natureza.
Quando penso no
prejuízo, que por pouco não é infinito, que pode resultar do erro quanto à
nossa vocação para o pastorado cristão, domina-me o temor de que
algum de nós tenha sido negligente no exame de suas credenciais. Preferiria que
vivêssemos em dúvida e nos examinássemos muitíssimas vezes, do que tornarmos
empecilhos no ministério. Não faltam numerosos métodos pelos quais o homem
pode testar sua vocação para o ministério, se ardorosamente o quiser fazer.
É-lhe imperativo que não entre no ministério enquanto não fizer profunda
sondagem e prova de si próprio quanto a este ponto. Estando seguro da sua
salvação pessoal, deve investigar quanto à questão subseqüente da sua vocação
para o ofício; a primeira é-lhe vital como cristão, e a segunda lhe é
igualmente vital como pastor. Ser pastor sem vocação é como ser membro professo
e batizado sem conversão. Nos dois casos há um nome, e nada mais.
1. O primeiro sinal
da vocação celeste é um desejo intenso
e absorvente de realizar a obra. Para se constatar
um verdadeiro chamamento para o ministério é preciso que haja uma
irresistível, insopitável, ardente e violenta sede de contar aos outros o que
Deus fez por nossas almas. Que tal se eu apelidar isso de uma espécie de
ternura, como a que os pássaros têm pela criação dos seus filhotes quando chega
a estação própria; quando a ave mãe está disposta a morrer, antes de abandonar
o ninho.
Alguém que conheceu Alleine intimamente disse
que "ele tinha infinita e insaciável avidez pela conversão de
almas". Quando pôde ter participação societária na universidade em que
estava, preferiu uma capelania, porque "o inspirava uma
impaciência por ocupar-se diretamente na obra ministerial". "Não
entre no ministério se puder passar sem
ele", foi o conselho profundamente sábio de um
teólogo a alguém que procurou a sua opinião. Se alguém neste recinto puder
ficar satisfeito sendo redator de jornal, merceeiro, fazendeiro, médico, advogado,
senador ou rei, em nome do céu e da terra, siga o seu caminho. Não é homem em
quem habita o Espírito de Deus em Sua plenitude, pois o homem assim revestido
da plenitude de Deus ficaria inteiramente enfadado com qualquer carreira que
não aquela pela qual o âmago da sua alma palpita.
Por outro lado, se
você puder dizer que nem por toda a riqueza da índia poderia ou ousaria esposar
qualquer outra carreira a qual o apartasse da pregação do evangelho de Jesus
Cristo, fique certo então que se noutras coisas o exame for igualmente
satisfatório, você tem os sinais do apostolado. Devemos estar convictos que a
desonra virá sobre nós se não pregarmos o evangelho. A Palavra de Deus deve ser
como fogo em nossos ossos, do contrário, se nos aventurarmos no ministério,
seremos infelizes nisso, seremos incapazes de suportar as diversas formas de
abnegação que lhe são próprias, e prestaremos pouco serviço àqueles aos quais
ministramos. Falo de formas de abnegação, e digo bem, pois o trabalho do
verdadeiro pastor está repleto delas, e, se não amar a sua vocação, logo
sucumbirá ou desistirá da luta, ou prosseguirá descontente, sob o peso de uma
monotonia tão fastidiosa como a de um cavalo cego girando um moinho.
"Na força do amor há consolação
que torna suportável uma coisa
que a qualquer outro rompe o
coração."
Cingidos desse amor, vocês serão intrépidos; despidos desse cinto mais que mágico
da vocação irresistível, consumir-se-ão na desventura.
Este desejo deve
resultar de reflexão. Não
deve ser um impulso repentino desajudado por uma ponderação ansiosa. Deve
ser o resultado do nosso coração em seus melhores momentos, o objeto de nossas
reverentes aspirações, o assunto de nossas mais ferventes orações. Deve
continuar conosco quando tentadoras ofertas de riqueza e comodidade entrarem em
conflito com ele, e deve permanecer como uma resolução serena e bem pensada
depois de tudo ter sido avaliado em suas proporções certas, e o preço muito bem
calculado.
Quando morava com
meu avô no campo, na meninice, vi um grupo de caçadores, com seus casacos
vermelhos, cavalgando pelos campos atrás de uma raposa. Foi uma delícia para
mim! Meu pequeno coração excitou-se; senti-me disposto a seguir os cães de
caça, saltando barreiras e cruzando valas. Sempre tive gosto natural por essa
espécie de atividade, e, na minha infância, quando me perguntavam o que eu
queria ser, costumava dizer que ia ser caçador. Bela profissão, na verdade!
Muitos jovens têm a mesma idéia de serem clérigos, como eu de ser caçador —
simples noção infantil, de que gostariam do casaco e do toque das cornetas; da honra, do
respeito e da tranqüilidade; e talvez sejam bastante tolos para pensar —
gostariam das riquezas do ministério (só podem ser ignorantes, se buscam
riqueza com relação ao ministério evangélico). O fascínio exercido pelo ofício
de pregador é muito grande para as mentes fracas, razão por que energicamente
advirto a todos os jovens a não confundirem fantasia com inspiração, e
preferência infantil com vocação do Espírito Santo.
Notem bem, o desejo
de que falei deve ser totalmente
desinteressado. Se um homem perceber, depois do mais
severo exame de si próprio, qualquer outro motivo que a glória de Deus e o bem
das almas em sua busca do episcopado, melhor será que se afaste dele de
uma vez, pois o Senhor aborrece a entrada de compradores e vendedores em Seu
templo. A introdução de qualquer coisa que cheire a mercenário, mesmo no
menor grau, será como um inseto no unguento, estragando-o de todo.
Esse desejo deve
ser tal que permaneça conosco, uma
paixão que agüente o teste da provação, um anelo do qual nos seja
completamente impossível fugir, ainda que o tentemos; desejo, na verdade, que
se torna cada vez mais intenso conforme os anos passem, até tornar--se um
anseio, uma anelante aspiração, uma consumidora fome de
proclamar a Palavra. Esse desejo intenso é uma coisa tão nobre e tão bela que,
toda vez que o percebo inflamar-se no peito de algum jovem, sempre me
contenho, não me apressando a desanimá-lo, mesmo que tenha dúvidas quanto à sua
capacidade. Talvez seja necessário, por razões que lhes serão dadas mais
adiante, sufocar as chamas, mas isto deve ser feito com relutância e com
sabedoria. Tenho tão profundo respeito por este "fogo nos ossos"
que, se eu mesmo não o sentisse, teria que abandonar de uma vez o ministério.
Se vocês não sentem o calor sagrado, rogo-lhes que voltem para casa e sirvam a
Deus em suas respectivas esferas. Mas se, com certeza, as brasas de zimbro chamejam por dentro, não as
apaguem, a menos que, de fato, outras considerações de grande importância lhes
provem que o desejo que têm não é fogo de origem celestial.
2. Em segundo
lugar, em combinação com o desejo ardente de ser pastor, é preciso que haja aptidão
para ensinar e certa medida das outras qualidades necessárias ao ofício de
instrutor público. Para provar sua
vocação o homem precisa testá-la com êxito. Não pretendo que na primeira vez
que um homem se levantar para falar, pregue tão bem como Robert Hall em seus últimos
tempos. Se a sua pregação não for pior do que o grande homem fez no início da
sua carreira, não deve ser condenado. Vocês sabem que Robert Hall fracassou
completamente três vezes, e clamava: "Se isto não me humilhar, nada mais
me humilhará". Alguns dos mais nobres oradores não foram dos mais
fluentes nos seus primeiros tempos. Mesmo Cícero no início padecia de voz fraca
e dificuldade de elocução. Contudo, ninguém deve considerar-se
chamado para pregar enquanto não provar que pode falar em público. Claro que
Deus não criou o hipopótamo para voar, e se o leviatã tivesse
forte desejo de subir aos ares com a calhandra, evidentemente seria uma aspiração
insensata, visto que não é dotado de asas. Se um homem for vocacionado para
pregar, será dotado de capacidade em algum grau para falar, capacidade que ele
cultivará e desenvolverá. Se o dom de elocução não existir no início em alguma
medida, não é provável que venha a desenvolver-se.
Ouvi falar de um
cavalheiro que tinha o mais intenso desejo de pregar, e tanto insistiu com o
seu pastor que, depois de múltiplas recusas, conseguiu licença para pregar um
sermão de prova. Essa oportunidade foi o fim da sua importunação, pois, depois de
anunciar o texto, viu-se privado de todas as idéias menos uma, que ele
transmitiu sentidamente,
e em seguida desceu da tribuna: "Meus irmãos", disse ele, "se
algum de vocês pensa que é fácil pregar, aconselho-o a vir até aqui para
perder toda a vaidade."
A prova a que
submetam as suas capacidades revelará a sua deficiência, se vocês não tiverem a
aptidão necessária. Não conheço nada melhor. Devemos dar-nos a nós próprios
uma boa prova nesta questão, ou não poderemos saber com certeza se Deus nos
chamou ou não; e durante a prova, devemos perguntar-nos a nós mesmos muitas
vezes se, de modo geral, podemos alimentar a esperança de edificar outros com os
nossos discursos.
Contudo,
devemos fazer mais do que submeter isso à nossa consciência e ao nosso
julgamento, pois somos juízes
ineptos. Certa classe de irmãos tem grande facilidade para descobrir que tem
sido maravilhosa e divinamente auxiliada em suas
declamações. Eu invejaria a gloriosa liberdade e a confiança
própria desses irmãos, se houvesse algum fundamento para isso. Pois,
lastimavelmente, com muita freqüência tenho que deplorar e lamentar minha
falta de sucesso e meus fiascos como orador. Não devemos confiar muito em
nossa própria opinião, mas se pode aprender muito de pessoas
judiciosas e de índole espiritual. De modo nenhum é isto
uma lei que deva obrigar a todas as pessoas, mas ainda assim é um bom e antigo
costume em muitas das nossas igrejas rurais, o jovem que aspira ao ministério
pregar perante a igreja. Dificilmente é um ensaio agradável ao jovem aspirante,
e, em muitos casos, mal chega a ser um exercício edificante para o povo;
todavia, pode dar provas de que é um recurso disciplinar dos mais salutares, e
poupa a exposição pública da ignorância excessiva.Fonte: O CHAMADO PARA O MINISTÉRIO, Charles Haddon Spurgeon
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